Não sei ao certo quanto anos tinha quando ouvi pela primeira vez sobre temperamentos. Certamente entre meus 18 e 20 anos, num curso de aconselhamento cristão. Descobri que aquele meu jeito alegre, extrovertido, falante e, não só as fofurices, mas tantos outros “defeitos” tinham uma classificação: eu era sanguínea. Até então, achava apenas que eu havia puxado a minha mãe, o que já era suficiente pra mim! Descobri que essa coisa meio Poliana, de se alegrar com as coisas mais simples, querer ser simpatica com todo mundo e ver poesia até no cheiro de esterco da fazenda (sim, amo! Memórias olfativas de quem passou a infância e adolescência indo a Chiador e morou perto da Xavier de Brito, a “praça dos cavalinhos” para os tijucanos) era reforçado pelo tal temperamento.
A verdade é que, com ou sem temperamento orientando pra isso, miserável é o homem que passa a vida sem enxergar beleza no cotidiano.
Acho a vida ordinária uma coisa linda. Caótica, algumas vezes, e linda. Linda com todas as contadições que possa haver e não apesar delas.
Talvez isso explique muito da minha inclinação, ainda na adolescência, por querer trabalhar com interiores. Afinal, é na nossa casa que nosso dia a dia se desenrola. Gosto de coisas descomplicadas, gosto de simplicidade. E concordo com Da Vinci nessa definição de que a simplicidade é o último grau da sofisticação.
Não se engane, é preciso uma dose de olhar apurado pra tirar os excessos e focar no que importa, tanto na vida, quanto na casa!
Gosto do cotidiano, do barulho da chave rodando na porta, da chaleira esquentando a água todo dia de manhã, amo os lençóis brancos secando ao vento no varal. Tenho pra mim que por isso gosto tanto do Vermeer1, afinal, uma pessoa que se propõe a retratar com tanta beleza imagens ordinárias do dia a dia vê beleza onde quase ninguém vê.
A leiteira (1657-1658), Vermeer
A gente não pode contemplar um quadro do Vermeer ao vivo todo dia, mas a gente pode olhar e ver beleza todo dia quando a gente se propõe a reparar nela.
Certa vez falei no meu instagram sobre como a gente tem trocado a beleza pela praticidade e pelo conforto. E que a beleza é uma necessidade da nossa alma. Sem ela a gente adoece. Mesmo.
Mas como, diante de uma vida tão doida, em cidades tão caóticas e feias com rotinas tão sem tempo a gente consegue fazer isso?
Definitivamente é uma escolha. Colocar a mesa bonita no café da manhã, talvez a única hora que você come em casa. Usar a louça que ganhou no casamento e o faqueiro herdado da bisa. Arrumar a cama ao levantar e borrifar um cheirinho bom pra ela te abraçar a noite (temos cinco sentidos e devemos explorá-los todos na casa e na vida). Acabar com essa história de não ter quadro na parede. Colocar uma boa música para tocar no fim do dia enquanto acende uma vela pra ver a chama flamejar. Tudo ao nosso alcance.
Uma mesa de um domingo qualquer, com toalha, sem bainha, feita do tecido, comprado na loja do bairro
Em seu livro Beleza, Roger Scruton, tem uma definição maravilhosa pra isso, que ele chama de beleza mínima.
“…e há também uma beleza mínima - o belo em sem grau mais baixo, o qual pode estar muito longe daquelas belezas sagradas da arte e da natureza que são examinadas pelos filósofos. Existe um minimalismo estético que é exemplificado pelo ato de pôr a mesa(…). Não nos dedicamos a essas atividades do mesmo modo como Beethoven se dedicou a seus últimos quartetos, assim como não esperamos que elas sejam lembradas para sempre como um dos triunfos do fazer artístico. Não obstante, queremos que a mesa (…) pareça boa - e isso é algo que importa da mesma maneira como a beleza geralmente importa: não apenas porque agrada aos olhos, mas porque transmite significados e valores que nos são relevantes e que desejamos conscientemente expressar.” SCRUTON, 2009,p. 19
Essa beleza mínima, ele conclui, é muito mais importante do que todas as grandes belezas a que podemos nos expor eventualmente na vida. Afinal, não é todo dia que podemos contemplar Florença, mas a beleza proveniente de um papel refinado ou de flores num vaso, pode nos oferecer constante e diariamente harmonia, adequação e civilidade.
Então, se você não consegue se encantar e contemplar coisas do cotidiano (não como quem contempla uma grande obra, mas como quem contempla a beleza na sua simplicidade), saiba que a sua casa é o primeiro lugar onde você pode exercer (sim, exercer pra te lembrar que é uma ação consciente) atenção à essa tal beleza mínima. Ali as escolhas estão ao nosso alcance, as decisões são nossas. E mesmo quando tudo do lado de fora está desordenado, feio e deixando sua mente confusa, chegar na sua casa e se encontrar nela, e encontrar nela beleza, será a melhor das recompensas.
Johannes Vermeer, pintor holandês do séc. XVII, da chamada Idade de Ouro Holandesa, um período em que, devido a ascensão da burguesia, os artistas deixaram de se dedicar a arte com temática religiosa e se debruçaram sobre registro de cenas cotidianas e natureza morta.